Autos de devassa: definição e tipos

A devassa era “a informação do delicto tomada por authoridade do Juiz para castigo dos delinquentes, e conservação do socego público” (PEREIRA E SOUZA, 1806, p. 20). Havia dois tipos: as “geraes”, que eram expedidas sobre delitos incertos, e as “especiaes” que supunham a existência do delito, mas desconhecia-se o agressor; ambas só poderiam ser tiradas em casos expressamente determinados em lei.

  1. devassas geraes eram “perigosas”, pois permitiam que fossem feitas calúnias a “victimas inocentes”; já as especiaes, como deveriam preceder ao corpo de delito, eram mais toleráveis. Vê-se, então, que parecia haver, por parte da Justiça portuguesa, um controle quanto à emissão de tais expedientes. geraes deveriam ser tiradas no princípio do ano ou “em certos, e determinados tempos”, e encerradas num prazo de trinta dias após ter iniciado o processo; e apenas os juízes de fora, os ordinários ou os corregedores tinham a incumbência de tirá-las.

As devassas especiaes deveriam ser expedidas nas seguintes situações:

(i) homicídio; (ii) “força de mulher”; (iii) “fogo posto”; (iv) fuga de prezo; (v) arrombamento de cadeia ou de portas; (vi) moeda falsa; (vii) resistência; (viii) “tirada do prezo do poder da Justiça”; (ix) cárcere privado; (x) “furto de valia de marco de prata, ou na estrada, ou no ermo”; (xi) arrancamento de arma na igreja, procissão ou na corte; (xii) aleijão de algum membro; (xiii) “ferimento de noite, ou no rosto”; (xiv) “ferimento com besta, arcabuz, ou espingarda”; (xv) “assuada”; (xvi) bofetada; (xvii) “açoites em mulher”, (xviii) assassinato, mesmo que não seja seguido de morte; (xix) “propinasão de veneno, ainda que se não siga morte”; (xx) desafio; (xxi) “pôr cornos, junto das casas de pessoas casadas”; (xxii) “danno em horta, ou pomar a requerimento da Parte”; (xxiii) “fazer, ou publicar sátiras, e libellos famosos”; (xxiv) “quebra de mercadores dolosos”; e finalmente (xxv) casamento de pessoas, que tem bens da coroa sem licença régia. “O simples uso, ou rito de arma de fogo sem ferimento, não he caso de Devassa, mas só de Queréla.” (PEREIRA E SOUZA, 1806, p 26).

Essas devassas deveriam ser iniciadas dentro do prazo de oito dias depois “do sucesso”, exceto no caso de incêndio ou quando o réu era preso em flagrante delito; e encerradas trinta dias após o delito ter sido cometido. Entretanto, Gomes (1766) alerta para o fato de que nem sempre era possível terminá-las nesse prazo, “pelo muito que ha por fazer em outros negocios”; no entanto, adverte, “terá cuidado o Juiz que ao menos dentro dos 30 tire tantas testimunhas, quantas bastarem para pronunciar-se o R.” Elas deveriam ser tiradas pelos juízes do território; isto é, pelos corregedores nas respectivas comarcas e pelos juízes de fora, ou ordinários nas cidades ou nas villas e seus respectivos termos, onde o delito foi cometido (PEREIRA E SOUZA, 1806).

Tanto nas geraes como nas especiaes deveriam ser inqueridas 30 testemunhas, exceto em casos de incêndio, de “furto de pequena entidade”, de “danno em horta, ou pomar” ou em casos “dos fogos de polvora”; para esses eram suficientes oito testemunhas. Havia, no entanto, algumas questões pontuais acerca das testemunhas que deveriam ser consideradas. Assim, caso alguma testemunha fosse referida no depoimento de outrem também esta deveria ser inquerida, mesmo que excedesse o número estabelecido. Depois de encerrada a devassa, quaisquer depoimentos eram considerados nulos. Finalmente, tanto nas geraes como nas especiaes as perguntas relacionadas ao costume[1] apenas eram feitas no fim do juramento.

Mas as devassas geraes ou especiaes poderiam ser anuladas nos seguintes casos: (i) quando não constava do corpo de delito; (ii) quando não precedia denuncia ou legitimos indicios; (iii) quando não se expressavam a causa, lugar e tempo do delito; (iv) quando não fosse tirada ou concluída dentro do prazo legal; (v) quando o número de testemunha não fosse preenchido; (vi) quando fosse tirada em casos não expressos pela lei; (vii) quando uma segunda devassa fosse tirada e não fosse precedida de provisão; (viii) quando as testemunhas “não forão perguntadas pelo proprio Juiz”; (ix) quando o Juiz fosse incompetente ou inimigo do réu “ou de outro modo suspeito”; e finalmente (x) quando o escrivão que tirou a devassa fosse suspeito (PEREIRA E SOUZA, 1806).

Como dissemos, as devassas eram procedimentos ex-officio, ou seja, o juiz poderia, por conta própria, iniciá-las. Entretanto, essa iniciativa, conforme Buzaid[2], se por um lado era um bem, porque zelava pelos superiores interesses da sociedade na repressão do crime, por outro lado podia ser nas mãos de uma judicatura menos imparcial, um perigoso instrumento de perseguição a inocentes. Nesse sentido ela diferia da querela que era de iniciativa particular ou pública.

 

Texto adaptado de: MENDES (2008)

 

[1] De acordo com o Primeiro Livro das Ordenações Filipinas, Título LXXXVI, perguntar às testemunhas pelo costume indicava se elas tinham “divido ou cunhadio com alguma das partes, e em que gráo, e se” tinham “tão estreita amizade, ou odio tão grande a alguma dellas, por que” deixavam “de dizer a verdade. E se receberam de alguma dellas ou de outrem em seu nome algumas dadivas, e se foram rogadas, ou subornadas, que dissessem em favor de alguma das partes (...)” ( 1786 , p.204).

[2]BUZAID, Alfredo. Origem do Despacho Saneador. Disponível < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3256.> acesso em 21/03/2005